comprei uma caneta preta
com uma borracha na ponta
uma borracha que apaga caneta
na madrugada de algum dia
entre a insônia e a varanda
o caderno me mostrava
que fora longe demais
cinquenta páginas preenchidas
com a caneta preta
nem as ideias estavam no lugar
tão falhas quanto ávidas
por me abandonarem
ou serem substituídas por hieróglifos
ou o garrancho de alguém
que não preencheu
cadernos de caligrafia na infância
(eu passava as tardes
preenchendo cadernos de caligrafia
enquanto o menino na tevê
pedia brócolis)
na madrugada desse dia
impreciso pelo tempo
que minha cabeça não computa
pelo tempo que meu corpo alimenta
outro corpo tão pequeno
que é preciso pôr a mão no peito
para confirmar a vida
pelo tempo que passa sem passar
e de repente já passou tanto
que o bebê é que me põe para dormir
essa madrugada não sei quantos dias
depois de ter comprado a caneta
(antes é que não pode ser
e pode ainda não ter sido)
vi o dia amanhecer
apagando cinquenta páginas
de um caderno médio
a borracha apaga e não borra nada
nem destrói o papel
diferente daquela azul e vermelha
da infância nos oitenta
mas essa que não borra nada
só apaga a tinta da caneta específica
primeiro fiz um teste
escrevi teste e apaguei
e sorri
e sorri por ter sorrido
uma coisa boba assim me fazer sorrir
senti os primeiros raios de sol
enquanto o pulso gritava
senti meu corpo todo apartado de mim
e nunca antes tão meu
Maria Cristina Martins é escritora, revisora e dançarina de flamenco amadora. Formada em jornalismo (UERJ) e história (UFRJ), faz parte da equipe de editoração do Arquivo Nacional e publica alguns de seus crimes no Instagram @farandola.mariacristinamartins. Em 2016, lançou seu maior delito até agora, “ovos de ferro”, pela editora 7letras.